O Senhor Razão
– Há um tempo atrás, minha neta, conheci um homem mais velho do que eu e, que muito me ensinou. Um senhor assim pomposo de suas palavras, firme em suas atitudes e convicções. Era até engraçada, a forma com a qual ele se colocava em tudo.
– Me parece uma boa história vó...
– E é. Ouça bem. Eu era uma menina quando o conheci, muito menina mesmo. A primeira vez da qual me recordo de ter o conhecido, como a figura que descreverei... - um sorriso saudoso surge em seu rosto.
A avó faz uma pausa para devanear no passado, mas continua...
– Eu já tinha lá pelos meus dezessete anos. Sempre quando ele falava eu embebia cada palavra, e o admirava. Pensava em aquele, ser o homem mais inteligente e sábio que eu conhecia. E tudo que era escutado se tornava uma verdade exímia para mim. Nós estávamos sempre muito próximos, muito amigos e eu me transformei com o tempo numa discípula dele. Até que chega um ponto na vida de todo ser humano, em que somos obrigados por nosso eu, a formamos a nossa visão de mundo. Eu acreditava que a minha visão era a mesma que a dele. E me parecia o certo. Então, eu fui estudar num lugarejo distante de onde morávamos. Minha querida! Como são fantásticas as lições que tomamos com a simples observação do estranho. Pois sim, tudo aquilo que lhe é novo é por consequência, estranho. Aquele lugar diferente e cheio de pluralidade me demonstrou a existência da palavra flexibilidade. E de repente, sem nem perceber eu a praticava. O meu amigo, eu visitava com frequência, quando tornava à minha casa. Sempre o mesmo. Já eu... Percebia pouco a pouco minhas mudanças de pensamentos e posturas, e aquilo me preocupava. Não por me achar errada, mas sim, por imaginar que ele desaprovaria muito se eu as mencionasse. O fato é que, quanto mais se faz contato com o quê lhe diverge, e se há respeito nessa relação, tu se torna mais sábia, mais amena e tranquila. Conquista paz consigo. E essa paz lhe faz mais feliz. Uma sequência de fatores que tornam a vida mais leve. Seria inevitável confrontar minhas posições pessoais recém reformuladas, com as de meu amigo, antiquadas e tão inflexíveis. Jamais pensei eu, em modificá-las, pois ele era mais velho e vivia numa realidade remota. Uma realidade de suas lembranças, de seus tempos, diferentes do meu. E como mudar a mente de um homem que há muito tempo já formou seu pensamento?
– Mas vó... Quem era esse seu amigo?
– Meu pai.
– E o que aconteceu depois?
– Aconteceu que eu fui me tornando aquilo que eu acreditava, e quando isso acontece não há quem não perceba. É visível cada vez mais, em cada ruga do rosto. E ele admirou o que eu me tornei. Ou apenas aceitou, ou respeitou. Não sei bem, pois nunca o perguntei. Mas ele disse sentir orgulho de mim, muito tempo depois. Aquilo libertou qualquer medo da desaprovação que eu poderia ter.
– Vó... Porque me conta isso?
– Você é jovem minha neta, e não se pode mudar a mente daqueles que a fizeram durante uma vida, imutável. Seja sábia na relação com seus pais aceitando o pensamento deles. Mas isso não significa que você precisa perder as suas convicções. Pelo contrário! Torne-se aquilo que você acredita, mas respeite a crença dos outros. Assim a sua também será respeitada. - sorriu amigável à neta e afagou seus cabelos olhando em seus olhos.
A neta abraça a avó, e sai da varanda correndo até sua bicicleta jogada no quintal da frente. Onde antes ela chegou chorando como criança pequena, ao colo da senhora. Montou à bicicleta, e com um aceno rápido e um beijo enviado ao ar, ela se despediu da sábia mais velha. Pedalou rumo a algum lugar, e a avó apenas observava com sorriso de missão cumprida, sua neta alçando voo para a vida. Com fome, sede e fulgor de abraçar os ensinamentos e experiências que a vida teria a lhe ofertar.
Pousando sua caneca na bandeja ao lado balançou-se em sua cadeira e recomeçou a leitura de seu livro, antes pausada pela presença da neta, e intitulado "Manual de reflexões para quem nada sabe".
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