#XícaraVIP - 02 - Chega mais, Millôr!

Ainda folheando os "Trinta anos" de Millôr encontra-se um diálogo estupendo! Magnífico! E embora publicado em 1951, pelo jornal Cruzeiro, na coluna PIF-PAF, eu ousaria dizer que demonstra certa "atualidade". 

Por Millôr Fernandes, 
Papo com a Lei 


“Porque se diz que nossa polícia não tem qualquer sentimento de justiça sendo, ao contrário uma força de coerção terrível, transmitimos aqui esse diálogo alto e esclarecedor.
Polícia – Fale.
Nós – Bem, o que faz você?
Polícia – Algumas vezes cumpro meu dever.
Nós – Que é isso?
Polícia – Bem… Por exemplo, controlo o tráfego.
Nós – Ah, você é aquele? Já o vimos uma vez – apita, levanta a mão, faz parar a cavalhada. Exato?
Polícia – Isso.
Nós – Não é justo.
Polícia – Como?
Nós – Deter o tráfego. Os industriais fabricam os carros para corres e os automobilistas compraram o carro porque ele faz 120. Que direito você tem de deter em sua beleza de velocidade essas máquinas que foram feitas só para correr? Em toda parte vemos a mesma força detendo e corrompendo essas máquinas poderosas que ficam gemendo e resfolegando, ansiosas.
Polícia – Não entendo de filosofia, nem sou pago para isso.
Nós – Que outros deveres você tem?
Polícia – Mantenho a ordem. Se alguém faz desordem, prendo.
Nós – Prende-o? Antes dele ter sido julgado?
Polícia – Uai, ele não pode ser julgado antes de ser preso.
Nós – Não importa. ‘Um homem é inocente até que se prove sua culpa’.
Polícia – Nós sabemos por experiência que um homem é sempre culpado de alguma coisa. É questão de rebuscar.
Nós – Ou baixar o braço.
Polícia – Também serve.
Nós – É impossível que seja mesmo verdade. Mas a polícia deveria ter em mente o contrário e acreditar que o mundo é povoado por anjinhos.
Polícia – Está bem. Como provaremos que o cara é culpado se não o prendemos?
Nós – Lá vem você. Ele deve ser levado ao tribunal, mas com extrema delicadeza, requintes de finura. Ele é um cidadão. Você devia ser mais amigo do que inimigo. Aliás, devia usar um uniforme menos aterrorizante e repelente.
Polícia – Que é que há com o meu uniforme?
Nós – Não gostamos dele. Militar demais. Você parece que vai permanentemente entrar em guerra contra outro país, e no entanto sua função é só proteger o vizinho que, ele próprio, paga. Você parece uma panzervision.
Polícia – Que é isso?
Nós – Uma máquina de guerra. Esmaga tudo á sua frente. Pelo menos é feita para isso. Também não gosto do seu quepe. Você devia usar alguma coisa em forma de frigideira e, nas horas vagas, cozinhar comida, fritar ovos para os pobres. Assim, transformar-se-ia de organização opressora em organização filantrópica.
Polícia – Fil… O quê?
Nós – Filantrópica – de caridade. E esses cintos e essa arma, tudo isso não podia ser alterado?
Polícia – É o que me faz respeitado.
Nós – Pelos inocentes. Os culpados agem melhor depois de ver as possibilidades que você tem. Essa arma visível lhes dá a exata ideia do quanto você pode. Façamos uma coisa simples e natural. Você deve ser o ‘amparo do suspeito e a proteção dos indefesos‘.
Polícia – A oitocentos cruzeiros por mês?
Nós – Isso é outro problema. O que lhe pede proteção às vezes ganha menos e, além disso, está sendo roubado.
Polícia – Nós somos sempre. Nosso trabalho vale mais.
Nós – Que é esse negócio preto aí do lado?
Polícia – É o cassetete.
Nós – Casse… O que?
Polícia – Cassetete, palavra francesa.
Nós – Puxa, é um negócio duro, parece de ferro!
Polícia – É de borracha.
Nós – Para que serve?
Polícia – Para dar nas cabeça dos caras que resistem à voz da lei.
Nós – Deixa de brincadeira. Não vai me dizer que usa esse processo da Idade Paleolítica.
Polícia – Não sei a que idade se refere. Eu só tenho trinta e dois anos.
Nós – Estamos falando de um período histórico.
Polícia – Ah…
Nós – Isso deveria ser feito de material macio, de modo que não machucasse, no caso de ser usado por acidente. Isso deve ser um emblema mais que uma arma. Não deve jamais ser usado.
Polícia – Não seria melhor que fosse oco, com sorvete dentro, confete ou qualquer coisa parecida?
Nós – Você está começando a perceber a ideia. Mas esta coisa de sorvete está cheirando um pouco a zombaria. Por que não usar um guarda chuva ao invés de um cassetete? Serviria também para bater, em casos raríssimos, e , mais comumente, protegeria você e o prisioneiro da chuva.
Polícia – Soa cavalheiresco.
Nós – Que barulho é esse?
Polícia – Qual?
Nós – No seu bolso.
Polícia – Soco-inglês.
Nós – Soco-inglês? Cada vez pior. Não vai dizer que usa isso.
Polícia – Oh, alguns anjinhos tem que ser desmaiados de vez em quando para impedir que sua inocência dê no pé.
Nós – Não é de admirar. Você gostaria de ser confundido com um criminoso?
Polícia – Pombas! Você acha realmente que ninguém cometeu nenhum crime?
Nós – Não é bem isso. Mas saber perdoar é tudo.
Polícia – Esse princípio é forte demais para quem ganha só 800 pratas por mês.
Nós – Já passamos por esse capítulo.
Polícia – Ele continua existindo.
Nós – O mal justamente é que escolhem os policiais pelo físico, força dos músculos e potência de soco, quando deviam escolhê-los pelo talento e educação;.
Polícia – Ótima ideia. E quando um ladrão entrasse me sua casa para matá-lo eu usaria a cultura?
Nós – Isso. Verificaria todos os prós e contras da situação e explicaria tudo para si próprio. Isso traria como conclusão dar sempre ao criminosos uma nova oportunidade.
Polícia – Enquanto isso ele o teria assassinado.
Nós – Morrer é um direito nosso.”  
(Extraído do livro Trinta anos de mim mesmo )

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